sexta-feira, 9 de abril de 2010

"Echente não é problema natural, é social"

Por Julio Delmanto e Otávio Nagoya

Alagamentos em São Paulo provocam mortes e prejuízos para as famílias pobres; moradores protestam contra descaso e interesses ocultos dos governos municipal e estadual. Foto: Pedro Nogueira

No dia 28 de outubro de 2009 o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) comunicou a diversos órgãos públicos municipais, estaduais e federais a “possibilidade de haver enchentes catastróficas nos meses de dezembro a março”, em texto assinado por Gilberto Câmara. Tudo indica que as providências não foram tomadas. A negligência do poder público diante do comunicado é responsável por cerca de 70 mortes no Estado de São Paulo, a grande maioria nas regiões periféricas. Além disso, famílias perderam suas casas, móveis, aparelhos domésticos e sua dignidade.

Neste verão, São Paulo enfrentou 47 dias ininterruptos de enxurradas, causando um enorme caos na cidade. Os paulistanos sofreram dificuldades com o transporte e riscos à saúde. Porém, a parcela mais prejudicada foi a população pobre, instalada em regiões carentes de infraestrutura. Alguns bairros, como o Jardim Romano e o Jardim Pantanal, ficaram mais de dois meses debaixo de água, em um cenário em que às vezes mal se distingue o que é córrego do que é rua. Para Anderson Laureano, morador da Vila Aimoré, na região do Jardim Pantanal, “o povo está revoltado, ao Deus-dará, sem solução e sem uma satisfação das autoridades”.

Conscientes de que “as enchentes são um problema social e não natural”, como explica a geógrafa Odete Seabra, as populações afetadas pelas enchentes não aceitam mais o discurso oficial, repercutido pela mídia coorporativa, que responsabiliza os céus pelo caos que atingiu as regiões pobres. Uma série de manifestações e articulações mobilizou vários bairros da cidade, acarretando inclusive em uma audiência com o prefeito. Como resume Anderson Laureano, “nós não vamos ficar quietos de jeito maneira, vamos é fazer mais barulho, ir para cima deles”.

A referência ao abandono e ao desinteresse das autoridades é praticamente unânime entre os moradores dessas regiões. Ao contrário das regiões de classe média e alta da cidade, os jardins Pantanal e Romano já haviam vivido algumas enchentes no
passado, mas nenhuma chegou nem perto da magnitude da atual situação. Durante dias a coleta de lixo ficou praticamente inexistente, as pessoas adoeceram e morreram por conta da água contaminada. Grande parte dos moradores perdeu os seus pertences e, no máximo, recebeu em troca uma cesta básica e um colchonete como “ajuda” para superar a situação.

As causas
“A explicação que as autoridades estão dando é que quem está fazendo a enchente são os próprios moradores”, relata o deputado Federal Paulo Teixeira (PT), sobre a tentativa da prefeitura em culpar a população pelas enchentes, apontando a ocupação irregular da várzea do rio Tietê como causa dos problemas. Odete Seabra lembra que a ocupação dessas áreas em primeiro lugar não é feita por opção dos moradores, e sim pelas condições econômicas à quais estão submetidos e, em segundo, que existe tecnologia para ser feita de maneira sustentável, “só precisa de investimento. Não pode é culpar quem não tem onde morar”.

Seabra insere os atuais problemas num processo mais antigo e amplo, que há muitos anos é responsável pela expulsão dos pobres do tecido urbano de São Paulo, por conta de interesses econômicos, como os da especulação imobiliária. Segundo ela, ao menos 20% da população paulistana vive em favelas.

Para a urbanista Mariana Fix, doutoranda em economia na Unicamp, “o problema é visto de outro ângulo quando observamos que é justamente nas áreas rejeitadas pelo mercado imobiliário e nas áreas públicas situadas em regiões desvalorizadas que a população trabalhadora consegue se instalar, assim, as ocupações ilegais, como as favelas, são largamente toleradas quando não interferem nos circuitos centrais de realização do lucro imobiliário”.

Para Paulo Texeira, “a prefeitura não está trabalhando corretamente, ela está dando cheque aluguel de 300 reais e cheque despejo pras pessoas irem embora, mas não está respeitando o valor da casa das pessoas”. “Cheque aluguel” – 300 reais mensais por seis meses antes que haja um suposto realocamento definitivo das famílias em uma unidade habitacional – e dinheiro para o despejo, que varia entre 1800 e 3 mil reais, são as únicas políticas da prefeitura para lidar com o problema, ignorando a possibilidade de oferecer a essas famílias condições dignas em seus próprios bairros e mesmo a possibilidade de indenizar com justiça tudo que foi perdido com as águas.

“O pessoal tá revoltado, e o prefeito tenta ganhar os moradores com esse negócio de vale aluguel”, afirma Sandoval de Farias, do Jardim Romano. Você tem seu barraco, sua casinha mais ou menos, aí vai morar de aluguel e depois derrubam sua casa, você vai morar aonde depois dos seis meses?”, critica Farias. Aqueles que concordam com o “cheque aluguel” passam a receber os trezentos reais e têm que buscar uma nova casa sozinhos, uma vez que a antiga é imediatamente demolida.

Anderson Laureano aponta ainda outro aspecto da proposta: desmobilizar os que estão organizados reivindicando seus direitos. Identificado como liderança, recebeu a oferta de um apartamento em Itaquaquecetuba, município localizado a cerca de 50 km do centro da capital. “Me ofereceram esse apartamento como um cala-boca, mas a gente continua lutando, independentemente disso”, afirma, convicto.

Segundas intenções
Nos casos específicos das inundações dos jardins Pantanal e Romano há indícios de que a manutenção do alagamento é fruto não da natureza, mas de uma opção política dos governos estadual e municipal, interessados na desocupação da área para construção do Parque Várzeas do Tietê, financiado por órgãos internacionais e apontado como “o maior parque linear do mundo”. O fato levanta a hipótese de que alguns alagamentos não tenham sido tão acidentais e inevitáveis quanto José Serra (PSDB) e Gilberto Kassab (DEM) fazem parecer.

O rio Tietê é permeado por uma série de usinas elétricas e barragens, que controlam seu fluxo. A abertura ou fechamento de uma barragem influencia o nível do rio em diversas outras regiões. Em entrevista ao portal UOL, o engenheiro João Sérgio, responsável pela barragem da Penha, afirmou que a EMAE (Empresa Metropolitana de Águas e Energia) determinou, no dia 8 de dezembro, o fechamento de uma das barragens do rio, com o objetivo de evitar alagamentos na marginal Tietê, o que complicaria o trânsito na cidade. No entanto, essa opção acarretaria no alagamento consciente de bairros como o Romano e o Pantanal.

Segundo Hamilton Souza, geógrafo e morador do Jardim Romano, “foi preferido fazer isso para não atrasar as obras da marginal. Escolheram alagar os bairros, penalizando a população”. Ele afirma que “é difícil acreditar que pessoas tiveram coragem de fazer isso de propósito, porque por serem técnicos eles deveriam saber quais são as consequências”.

Muitos moradores acreditam que o ocorrido não é fruto de descuido, mas de atuação criminosa do governo, que se aproveitou da enchente para expulsar as pessoas da região. “Isso tudo faz parte de um programa do Estado de fazer o dito maior parque linear do mundo”, conta Alexandre Ferreira, morador do Jardim Pantanal. “Na nossa avaliação, a prefeitura está fechando as comportas pra alagar e forçar as famílias a saírem e facilitar o trabalho de implantação do parque”, finaliza.

Bruno Miragaia, da Defensoria Pública conta que o poder público afirmou que o fechamento da comporta da Penha não gera, por si só, as enchentes. Porém o advogado acredita que o fato, com o assoreamento do rio, pode ser uma das principais causas. “O objetivo do poder público é a retirada das casas na área de construção do parque, com ou sem água, só que essa remoção viola todo um sistema jurídico”, constata Miragaia.

Júlio Delmanto e Otávio Nagoya são jornalistas

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