Por Gabriela Moncau
“Vozes exaltadas, choros, risos e gritos / Se alastram na multidão. / Tétrico cenário, à luz do dia. Meninas da Febem.... / Ao anoitecer, nas paredes dançam sombras enormes, / disformes, impressionantemente tristes. / Adolescentes que um dia tiveram sonhos, caprichos, / esperanças e, pelas circunstâncias amargas de suas vidas, foram chamadas de fora da lei. / Suéllens, Gabrielas, Natálias, Marias.../ Suas histórias são parecidas”. O trecho do poema Meninas da Febem, foi escrito pela funcionária carcerária Otília Rodrigues Alves. Otília é uma das 360 mulheres que expressaram, por meio de diferentes manifestações artísticas, a perspectiva de quem vive hoje no sistema penitenciário de São Paulo. O concurso cultural ao qual participaram, realizado pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), foi em 2005, aplicado dentro das penitenciárias, hospitais de custódia e unidades da Fundação Casa (ex-Febem) da capital paulista.
Segundo Flávia Rahal, presidente do IDDD – OSCIP formada basicamente por advogados atuantes na área criminal com o intuito de atender pessoas que não tem acesso à defesa – “o projeto surgiu com a ideia de utilizar a arte pra que essas pessoas que estão privadas da sua liberdade pudessem ter uma forma de se manifestar, porque isso também é uma forma de defesa, de autodefesa”. Assim, internas, presas e agentes carcerárias produziram materiais artísticos por meio de oficinas, subdividas em fotografia, literatura e desenho. Na quarta-feira, 28/4, o Instituto lançou o livro O direito do olhar – publicar para replicar, que documenta o processo de realização do projeto, bem como várias das produções artísticas de suas participantes.
Questionada sobre o motivo de o projeto ter sido direcionado às mulheres encarceradas, Rahal explicita a diferença das dificuldades que essas enfrentam: “Aqui em São Paulo, a mulher não tem direito a visita íntima, o homem tem. A mulher não é visitada pelos seus familiares, muitas vezes fica esquecida no sistema. Os homens são visitados, porque a mulher que tá do lado de fora tem uma fidelidade muito maior pro homem que está preso do que o inverso. A mulher é presa grávida. A mulher é presa e dá a luz. Fica com o filho quando o filho é pequeno, depois ele é tirado dos braços dela”. “Então dentro de uma parte da sociedade que é excluída, elas são as mais atingidas por esse esquecimento e pela falta de olhar, que deveria ser diferenciado pelo gênero”, conclui a advogada.
Hoje, aproximadamente 25.909 mulheres cumprem pena no Brasil, representando 6% da população carcerária. De acordo com o Relatório final do Grupo de Trabalho Interministerial – Reorganização e Reformulação do sistema prisional feminino, realizado pelo Governo Federal em 2007, existem no país apenas 55 unidades prisionais femininas. Antes de serem presas, 66% das mulheres moravam com seus filhos e apenas em 19,5% dos casos o companheiro assume a educação da(s) criança(s). Ainda referente à questão das presas com seus filhos, a pesquisa revela que os espaços destinados a creches nos presídios são precários e não existem critérios para separar mãe e filho. Além disso, a lei não estipula período obrigatório para amamentação. A opressão pela condição de gênero também é frequente, “a tortura psicológica é amplamente utilizada, por meio da ameaça de violência e morte ou constrangimento sexual, notadamente em unidades que têm população mista ou em que os funcionários são homens”, expressa o relatório.
Dentro da cidade de São Paulo, onde o concurso artístico foi posto em prática, o número total de presas era de cerca de 3,7 mil e, desse total, 680 mulheres, crianças e adolescentes se inscreveram. Entre essas, 360 foram selecionadas para participar.
Hermes de Souza, 45, um dos oficineiros da categoria de literatura, conta um pouco da sua experiência ao trabalhar no projeto. “Hoje eu sou articulador social, mas não fui isso por toda a minha vida. A década de 1990 foi a época que eu fiquei preso, fui também traficante e dependente químico por 10 anos”, relata. Souza descreve o seu primeiro envolvimento com a arte como um acaso, durante uma época crítica de sua vida, enquanto cumpria pena, “Hoje eu discuto a arte como um instrumento de transformação social. E eu a conheci numa brincadeira. Eu vi um pedaço de madeira e vi nas veias da madeira o desenho de uma cabeça de cavalo. Quando eu falei pros meus amigos de cela, eles acharam que o craque tinha comido meu cérebro. Foi aí que eu peguei um cortador de unha, e fiz a primeira escultura”, relata. “Tanto dentro do presídio quanto dentro da favela, eu tenho uma identidade muito forte com esse público. Essa credibilidade que eu tenho facilita bastante. Nas oficinas a gente chorava muito, as histórias delas eram muito fortes, diferentes da realidade que eu estava acostumado”, conta Hermes.
Maria Lúcia da Silva, uma das participantes do concurso e atual detenta, espera que o livro não só mude o modo como a população enxerga os presos, mas também a maneira como os trata quando esses terminam a sua pena. “Fora nos sentimos mais presas do que quando estamos lá dentro, pois lá temos muitas pessoas ou instituições que nos dão a mão e aqui dificilmente se encontra qualquer auxílio. Então muitos voltam, eu mesma voltei 3 vezes pro sistema prisional. E não quero mais voltar. Tanto que eu escrevi uma poesia buscando uma saída”, afirma Maria Lúcia, que conclui, “Já cheguei em lanchonetes de amigos, pedindo emprego e eles negaram porque eu estava em liberdade condicional, quer dizer, as pessoas tem medo de nos ajudar, de nos empregar. O Estado precisa fazer alguma coisa. Não existe cidadania com o desemprego estampado na cara da população”.
Gabriela Moncau é estudante de Jornalismo
(imagens realizadas pelas detentas e agentes do sistema carcerário da capital paulista)
(imagens realizadas pelas detentas e agentes do sistema carcerário da capital paulista)
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