segunda-feira, 19 de julho de 2010

Que venha a próxima Copa


Por Bruno Elias

Arrisco a me incluir entre os brasileiros apaixonados pelo futebol. Não dos fanáticos, que começam a ler o jornal pelo caderno de esportes ou que trocam qualquer compromisso pela transmissão do jogo de domingo, mas dos que ainda se surpreendem com a força desse esporte manejado por pés (!) ao assistir eventos como a Copa do Mundo na África.

Quando guri, estava entre os que estropiava os dedos em terrenos baldios atrás de “dentes de leite” e que, arriscando alguns chutes e passes em pequenos torneios, via nas diferentes chuteiras dos meninos essa capacidade às vezes silenciosa do futebol em diluir e ao mesmo tempo realçar as diferenças sociais entre os nossos.

Em minha memória, entre recordações desorganizadas, a vitoriosa Copa de 1994 se destaca. Para alguns, era a volta por cima, vinte e quatro anos depois do tricampeonato, da seleção brasileira ao seu suposto lugar de direito depois de frustradas tentativas, como a da bela seleção dirigida por Telê Santana em 1982. Para outros, aquela comoção e envolvimento era algo novo e encantador, renovando em muitas infâncias o acalentado sonho de ser jogador de futebol ou a paixão pelo esporte divulgado no Brasil por Charles Miller. Daquele Tetra, guardaria mais lembranças do que dos três campeonatos seguintes, já que Ronaldos e Rivaldos seriam incapazes de renovar a empolgação de outrora. Poderia recordar a escalação da Copa nos EUA, mas dificilmente o faria com o mesmo nível de detalhe em relação à 1998, 2002 e 2006, seleção do penta incluída.

Meio desligado com o que acontecia no mundo da bola, cheguei a esta Copa de 2010 com a mesma conversa fiada de muitos de que “a Copa tá desanimada” e de que não ia me “engajar” em acompanhá-la. A propósito, engajar é um termo bem adequado à relação de muitos brasileiros com o futebol. Brigamos, debatemos, choramos, sorrimos, levantamos dados, enfim, dedicamos uma parte importante de nosso tempo e atenção a um esporte que é compreensivelmente chamado de paixão nacional. Porque em Pindorama é assim: qualquer um se arrisca a palpitar sobre futebol. Não precisa entender, saber como são marcados os impedimentos ou quantos jogadores podem ser substituídos a cada jogo. Falar de futebol é admitido a qualquer um (hábito democrático que não deveria anistiar as banalidades e o lugar comum dos “comentaristas profissionais”, aceitos sem muita contestação).

Nesta Copa, não demorou muito para a realidade contestar o desânimo anunciado. Em um piscar de olhos surgiram carros pintados, bandeiras nas janelas e camisas da seleção canarinho vendidas aos montes nas ruas. Para alguns, inclusive, a Copa começaria antes, com o anúncio da convocação feita por Dunga para o mundial. As críticas, é claro, foram centradas na ausência de atletas que na época estavam jogando bem, a exemplo de Neymar, Ganso, entre outros. Firula, a meu ver, um pouco exagerada porque mesmo com essas frustrações pontuais e a ênfase defensiva do nosso time, deveríamos reconhecer que não estamos mais tão bem servidos de alternativas como antes.

A seleção dos “comportados” de Dunga tampouco era uma seleção ruim. Na verdade, tinha a cara do seu treinador, ex-volante e técnico vitorioso, que não joga para a torcida, mas dispunha de um currículo respeitável de títulos e vitórias recentes. Mesmo ignorando a tradição do nosso jogo bonito, o fato é que dentro de um quadro de mediocridade quase generalizada, nossa seleção era até capaz de ganhar esta Copa. Um sinal revelador desses novos tempos, em que o melhor jogador do Brasil foi um zagueiro e não um atacante. Grande Lúcio!

Talvez seja por este realismo que, mesmo não estando entre os maiores admiradores do técnico brasileiro, não me incluí na frente anti-Dunga, que ia desde os santuaristas do “futebol arte” até setores expressivos da grande mídia, como a Rede Globo. Só não imaginava que este conflito provocaria alguns dos melhores momentos da Copa, como o sonoro e global (literalmente) “Cala a Boca Galvão” e as revelações trazidas à tona sobre os bastidores da cobertura jornalística do campeonato.

A briga de Dunga com a Globo, sobretudo no que toca a sua resistência em dar a tradicional e, registre-se, negociada exclusividade à emissora carioca deu muito pano pra manga. Barrada na porta da concentração, uma irritadiça Fátima Bernardes receberia tratamento bem diferente daquele dado em outras Copas, quando sua presença constante dentro do ônibus da seleção e nas dependências dos alojamentos dos jogadores era parte de um lucrativo jogo combinado com o presidente CBF, Ricardo Teixeira.

A estocada de Dunga em um dos repórteres da emissora numa coletiva de imprensa e o pito ao treinador tentado pelo Fantástico seriam respondidos por milhares de internautas com mais um “cala boca” virtual (agora ao apresentador Tadeu Schmidt, que tomou as dores da empresa no horário nobre de domingo) e o lançamento, no dia seguinte, de uma campanha de boicote às transmissões do maior grupo de comunicação do país. Essa mobilização espontânea de vários torcedores pode até não ter gerado perdas substanciais de audiência, mas o #diasemglobo provocou um debate importante sobre a decadência de uma emissora que não mede esforços para impor seus interesses econômicos acima de uma cobertura jornalística plural e de qualidade.

E assim continuaria, acompanhando pela tela de outras emissoras e pela internet, os momentos finais da primeira Copa realizada em solo africano. África, inclusive, da qual falamos pouco durante essas semanas, como se fosse possível esconder pelos milhões em patrocínios e os belos estádios que receberam o Mundial, as mazelas sociais que foram historicamente impostas aos povos deste continente irmão.

Com a precoce eliminação do Brasil, ainda torceria sem sucesso para Gana, Argentina, Paraguai e a “Celeste” uruguaia. Especialmente por torcer pelos argentinos, ouviria muitas piadas e contestações. Mas que culpa eu tenho por não concordar com esse preconceito ridículo que é estimulado pelos meios de comunicação e extrapola a razoabilidade de uma rivalidade esportiva, não raro flertando com preconceitos dos mais reacionários contra nossos vizinhos?

Tanto menos teria por admirar Maradona, não só pelas suas posições progressistas, como a reiterada solidariedade à Revolução Cubana ou à luta das Mães da Praça de Maio, para ficar em apenas dois exemplos, mas sobretudo pela força moral e espírito de equipe que o tornava quase um 12º jogador da seleção portenha. Dentro de campo, o ex-camisa 10 argentino pode até não ter superado Pelé ou mesmo nosso Garrincha, mas hoje, enquanto um anódino Edison Arantes faz comercial de qualquer coisa que aparece, “dom Diego” tem ajudado a retomar as melhores tradições de um futebol ousado, ofensivo e com muitos gols (ainda que insuficiente para resistir ao trator alemão nas quartas de final).

No fim, para quem tinha expectativa de ver uma mini-edição da “Copa América” ou times africanos jogando bem como nos mundiais sub-20 e Olimpíadas, ficou a frustração de ver uma final européia entre Holanda e Espanha, vencida por merecimento por esta última. E foi no vácuo de um futebol pouco vistoso que outros personagens acabaram roubando a cena, seja a serelepe bola Jabulani, a estridente vuvuzela, o pé frio de Mick Jagger ou o vidente polvo Paul.

Mal nos despedimos da África e os olhos dos que gostam do esporte que a Copa celebra de quatro em quatro anos já se voltam para o Brasil, sede do próximo mundial. Profundamente enraizado na cultura popular do povo brasileiro, o futebol deveria ser levado mais a sério pelos que querem fazer do nosso país um lugar mais justo e democrático.

A realização de grandes eventos esportivos como a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016 criará novas oportunidades de emprego e simboliza um importante reconhecimento internacional do nosso País. No entanto, a Copa brasileira deve se propor a ser mais que um amontoado de jogos ou um novo filão para o apetite voraz das empreiteiras responsáveis pelas obras de infraestrutura.

Se queremos disputar uma visão de mundo democrática e popular em amplos setores da população, deveríamos iniciar desde já um grande debate nacional sobre a mercantilização desse esporte e uma luta contundente para diminuir o poder político dos cartolas do futebol brasileiro e mundial. Entre outras coisas, é preciso incidir na disputa ideológica das torcidas, no combate à corrupção empresarial e na defesa de condições de trabalho decente para os jovens atletas, desde as categorias de base. Não há polvo no mundo que consiga prever se teremos, além de um hexacampeonato, mais essa vitória. Afinal, a imprevisibilidade do futebol é uma de suas maiores virtudes e a despeito da sagacidade do molusco alemão, a tal “caixinha de surpresas” sempre arma das suas.

Bruno Elias
Coordenador de relações internacionais da JPT

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